De início, pode-se conceituar a desconsideração da personalidade jurídica como a retirada da proteção legal conferida pela lei às pessoas jurídicas, impedindo, momentaneamente, a segregação entre os patrimônios da pessoa jurídica e de seus sócios/controladores/administradores (pessoas físicas), com o escopo de evitar a distorção da finalidade para a qual ela foi, efetivamente, criada.

Na verdade, “o desvirtuamento da atividade empresarial, porque constitui verdadeiro abuso de direito dos sócios e/ou administradores, é punido pelo ordenamento jurídico com a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, medida excepcional para permitir que, momentaneamente, sejam atingidos os bens da pessoa natural, de modo a privilegiar a boa-fé nas relações privadas”[1].

Realmente, “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, medida excepcional prevista no art. 50 do Código Civil de 2002, pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial. A desconsideração da personalidade jurídica é regra de exceção, aplicável somente a casos extremos, em que a pessoa jurídica é utilizada como instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou confusão patrimonial (EREsp 1306553/SC, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, DJe de 12/12/2014)”[2].

Segundo esses ideais, importante verificar as disposições trazidas pelo art. 160 da Lei nº 14.133/2021, essencialmente determinando a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em face das empresas que participam do procedimento licitatório:

Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.

Temos, pela Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), uma nova determinação legal a respeito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, essencialmente voltada para proteger as contratações públicas e, em especial, voltadas para as sociedades empresárias que negociam e efetivam contratos com a administração pública. Entretanto, podemos afirmar que esse dispositivo é um tanto curioso.

Curioso no sentido de adotar a nomenclatura “desconsideração da personalidade jurídica”, mas não possui os mesmos efeitos (bem como, os mesmos requisitos) que essa “teoria” possui em diversas passagens das nossas legislações privatistas, como podemos verificar com os textos legais colacionados abaixo:

CC/02 – Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

CDC – Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Percebe-se da leitura desses dispositivos que a legislação tem adotado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para alcançar os bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica, desde que comprovados o abuso de direito, o desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, requisitos autorizadores da medida, conforme legislação civil.

Esse, inclusive, é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, inclusive:

(…) o desvirtuamento da atividade empresarial, porque constitui verdadeiro abuso de direito dos sócios e/ou administradores, é punido pelo ordenamento jurídico com a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, medida excepcional para permitir que, momentaneamente, sejam atingidos os bens da pessoa natural, de modo a privilegiar a boa-fé nas relações privadas. (STJ, REsp 1.395.288/SP 2013/0151854-8, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11-2-2014, 3ª T., Dje 2-6-2014)

“(…) – A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída. – A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. (STJ, RMS 15.166/BA, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 08/09/2003).

Seguindo esse mesmo sentido, o posicionamento adotado pelo Tribunal de Contas da União também vinha demonstrando a possibilidade de extensão da responsabilidade da sociedade empresária para seus sócios, quando vislumbrada a utilização da empresa para prejudicar o erário, desde que presentes os requisitos do desvio de finalidade e a confusão patrimonial:

“A declaração de inidoneidade de determinada empresa só pode ser estendida a outra de propriedade dos mesmos sócios quando restar demonstrada ter sido essa última constituída com o propósito deliberado de burlar a referida sanção” (TCU, Plenário, Acórdão 2.958/12, Rel. Min. José Jorge, 31.10.2012).

“A simples constatação de prejuízo ao erário, decorrente de inexecução contratual por parte de particular contratado com o poder público, não autoriza a aplicação direta e imediata da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para a qual se faz necessária a comprovação dos elementos objetivos caracterizadores de abuso da personalidade, quais sejam, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, por força do art. 50 do Código Civil”. (TCU, Acórdão 1577/2011-Primeira Câmara, Relator: Augusto Nardes, 15/03/2011).

De igual maneira, a doutrina também segue essa mesma linha de pensamento. Nesse sentido, Rennan Thamay[3], por exemplo, chega a afirmar que é:

(…) neste contexto é que nasce a figura da desconsideração da personalidade jurídica para fazer com que o credor não perca de vista a realização de seu direito ao crédito, já que, em certas ocasiões, as empresas são típicos escudos das fraudes realizadas por seus sócios ou administradores que, conscientemente, transferem o patrimônio advindo da fraude, dentre outras tantas condutas ilícitas, para o seu patrimônio individual.

Apesar de ser esta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o dispositivo segue o pensamento elaborado pela jurisprudência, o qual se utiliza dessa teoria para estender os efeitos de sanções aplicadas a determinada pessoa jurídica, aos seus sócios, administradores ou pessoas jurídicas ligadas à empresa sancionada, entretanto ampliando os requisitos necessários para a instituição da medida, possibilitando a desconsideração quando ficar demonstrado o abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos na legislação ou para provocar a confusão patrimonial.

Aqui não há, no entanto, um caráter pecuniário da teoria, na verdade busca-se dar maior efetividade às sanções aplicadas às pessoas jurídicas, ainda mais por envolver a coisa pública, evitando que estas, através de manobras jurídicas, voltem a participar de processos licitatórios através de terceiros, inclusive, sendo determinação lega, a necessidade de observação do contraditório durante todo o procedimento.

Certamente, como referido acima, toda sanção aplicada pela administração pública necessita do devido processo administrativo e, no caso da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica, isso não será diferente.

Essa é a determinação da parte final do artigo, que afirma ser necessária a observância do contraditório e da ampla defesa, além da obrigatoriedade de análise jurídica prévia, ou seja, a lei exige que um corpo jurídico avalie se o caso concreto possui todos os requisitos para desconsiderar a personalidade jurídica, uma vez que se trata de uma medida excepcional.

[1] STJ – REsp: 1395288 SP 2013/0151854-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 11/02/2014, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/06/2014.

[2] STJ – AgRg no AREsp: 303501 SP 2013/0051406-9, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 18/06/2015, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/06/2015.

[3] THAMAY, Rennan. Manual de direito processual civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 187.

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